15 de outubro de 2010

Mais sobre o samba

A cultura brasileira constituiu-se ao longo do tempo das mais diversas fontes e influências para a construção de sua concepção musical. Aproximando a música indígena, os ritmos africanos e a música tradicional européia, o povo brasileiro constrói uma “geléia geral” musical, evidenciada por Varnhagen no século XIX1 e perpetuada na sociedade contemporânea. Esclarecer esse caminho e discutir sobre os novos rumos da música no Brasil tem sido objeto de estudo para as diversas áreas que tratam da cultura brasileira. Essa produção buscará contribuir para esses estudos, utilizando uma abordagem historiográfica da cultura brasileira, sua construção e direções no processo histórico do país.

José Ramos Tinhorão relaciona a evolução social do Brasil com a dominação econômica e a dependência da cultura estrangeira2. Durante o período colonial, a sociedade brasileira - composta em sua maioria por negros e europeus – é moldada a partir de influências sócio-culturais dos povos que criarão a identidade nacional. Francisco Adolfo de Varnhagen - historiador do século XIX e membro-fundador do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) - foi responsável pelas primeiras pesquisas sobre a identidade do povo brasileiro, onde busca informações acerca dessa composição conjunta com o estrangeirismo, que influenciava a cultura de maneira majoritária. Sua explicação para esse fenômeno não foi aceita primeiramente e o IHGB, órgão pensante acerca da identidade nacional no Brasil Imperial, tentou até mesmo a eugenia, julgando a presença do negro e do índio insignificante para a construção dessa identidade.

As medidas adotadas somente fortaleceram a presença multicultural nas camadas sociais, que, como seria para Mark Block (obra p.), seriam a responsável pela história vista de baixo, já que por um lado ritmos como o lundu, a congada e o fado faziam parte do cotidiano das baixas camadas sociais e, por outro lado, o choro, o romantismo e as cantigas portuguesas passam a invadir os bailes e salões na segunda metade do século XIX. Não que os ritmos africanos e indígenas eram bem aceitos pela alta sociedade brasileira do período imperial, mas a mistura de ritmos passou a ser apreciada por essa camada social à medida que mostrava suas influências tanto na senzala quanto na casa grande3.

Durante o início do século XX – a chamada “belle époque brasileira” -, após a proclamação da república, a música popularesca era composta de valsas, polcas e mazucas vindas da Europa, mas também dos Estados Unidos, que iniciara seu processo de criação musical em torno da música folk, do campo. No Brasil, a música sertaneja, de seresta, empolgava as pequenas multidões rurais, conglomerados de pequenas centenas de habitantes, mas que compartilhavam o mesmo cotidiano. Retratar o cotidiano foi a postura adotada pelos escravos do jongo ou da congada no período colonial, e esta será a postura adotada durante a belle époque brasileira no campo.

Nas cidades, as quais cresciam vorazmente - apesar da dominação social exercida pelos latifundiários -, o sentimento era mais importante, já que a grande maioria da população era composta pelo proletariado e, apesar dos bailes e festas dos donos de propriedades, reunia-se nos subúrbios, na periferia, onde a criação musical representava o cotidiano suburbano. Nascia assim os primeiros sambas, em contrapartida aos ritmos europeus e estadunidenses presentes no imaginário da época.

A música negra cantada nas senzalas passa a se adaptar à vida nos morros do Rio de Janeiro e São Paulo, primeiramente na cidade maravilhosa. Os núcleos urbanos no Rio, devido a sua arquitetura4, proporcionavam a aproximação do operariado, do contingente de funcionários domésticos e pequenos comerciantes. Os teatros em revistas eram o primeiro passo para tornar essas músicas nacionalmente conhecidas, não só no campo musical, como também no campo teatral5. As revistas teatrais serviriam como trampolim para a inserção da música popular do morro nos núcleos aristocráticos.

As revistas do Rio de Janeiro do início do século XX eram direcionadas para o teatro, onde a música entraria nas primeiras edições em segundo plano. Com o passar do tempo e com o sucesso nacional das músicas divulgadas nesses selos, que futuramente seriam responsáveis pelas tiragens de discos, como a gravadora Chantecler, os músicos entraram na onda das revistas de teatro, atraindo público cada vez mais constante nas apresentações ao vivo. O preço do ingresso para esses shows era irrisório, pois os mesmos eram feitos ao ar livre e com a participação de músicos que ainda estavam no anonimato, atraindo multidões para as praças públicas do Rio de Janeiro. Em um desses eventos, ocorrido antes do carnaval de 1911 com o intuito de divulgar as músicas do carnaval daquele ano, contou com a participação de uma música de Nicolino Milano que logo após a apresentação estava sendo entoada em todos os cantos da cidade6. Esse foi o primeiro fado adaptado para o carnaval, apesar da existência da já famosa marchinha de Chiquinha Gonzaga “Ó abre alas”, criada em 1909, também com cadências do fado. Dessa mistura de ritmos europeus, como o fado e a polca, nascia a marchinha, que viria a ser o carro-chefe dos carnavais cariocas.

Chiquinha Gonzaga já era considerada uma grande maestrina nos autos de 1910. Seu estilo livre, desprendido das regras tradicionais e misturando os ritmos existentes em suas canções, se tornaria a precursora das marchinhas escritas em pautas, lançadas inicialmente nas revistas teatrais, direcionada para a sociedade “belle époque” brasileira, que, por pura ironia, apresentava críticas sociais a essa mesma classe ouvinte, aproximando-se ainda mais do público e iniciando o processo de popularização da música direcionada somente a alta sociedade da época até então. Tangos, maxixes, polcas e fados, além das músicas de senzala do período colonial, como o jongo, seriam os responsáveis por influenciar os artistas populares e iniciar o processo de criação de um novo ritmo musical nascido na periferia da cidade: o samba entoados nos morros.

O samba - nomenclatura que em dialetos bantu significa “umbigada” – expressava no morro todo o descontentamento com os governos oligárquicos e se aproveitavam da sutileza do jongo para alfinetar a classe mais abastada. A identificação popular com as músicas para o teatro era tanta que, após 1915, as rádios passam a inseri-las em sua programação, aproveitando músicos como Pixinguinha, Ari Barroso e Sinhô, além, é claro, da própria Chiquinha Gonzaga, tornando-se a grande sensação em todos os meios sociais cariocas, do morro às mansões da zona sul, lançando assim um dos maiores patrimônios culturais brasileiros.

A música popular modifica-se ao longo do tempo, mas mantém o mesmo viés da música dos séculos anteriores, que buscavam inserir em suas canções todos os gêneros musicais existentes, refinando cada vez mais a qualidade musical e a peculiaridade única da nossa MPB.

Em 1917, é gravado o primeiro samba. Donga e seu “Pelo telefone” utiliza-se de elementos do samba enredo e marchinhas para dar vida ao personagem que fará história até hoje no cotidiano da música popular brasileira: evidenciava-se assim a vida do malandro como expoente para o novo estilo musical.

Após a gravação de “Pelo telefone”, o samba inicia um novo caminho traçado por seus autores involuntariamente: se torna um produto comercializado nas rádios, meio de comunicação que surge no início do século e que, a partir de 1920, passa a entreter a vida das famílias de classe média dos centros urbanos.

Em 1930, Getúlio Vargas torna-se presidente do Brasil através de um golpe popular. Sua política logo se mostrou populista e nacionalista, inspirada pelos governos autoritários da Itália de Mussolini e de Portugal de Salazar. Vargas utiliza o rádio como meio de divulgação de suas idéias populistas, e começa a fazer propaganda política em meio a programação cultural das transmissoras, que, receosos com a queda da audiência, passam a incorporar em sua programação o samba, ouvido por todos os grupos e admirado tanto por membros da elite carioca quanto pelos empregados dos mesmos, ajudando a incorporar o nacionalismo como forma de união de diferentes grupos sociais.

Assim o samba começa a ser conhecido por todo o Brasil, fundindo-se com ritmos regionais, principalmente no nordeste do país, onde a cultura regionalista é mais acentuada. Após a saída de Vargas em 1945, o samba já era conhecido em todo o Brasil. Nas vozes de Orlando Silva, Cauby Peixoto, entre outros, o samba passou a incorporar aspectos de boleros, chorinhos e serestas.

João Gilberto, baiano de Juazeiro, adorava ouvir as músicas da época no auto-falante da praça central da cidade. Ainda garoto, sonhava em ir morar na capital para fazer sucesso como crooner de um grupo vocal, a nova sensação nos bailes do Rio. O que João não imaginava era que em seu destino havia algo muito maior do que ser apenas um cantor de um grupo vocal...

João Gilberto cantava muito bem. Com uma voz forte, conseguia imitar com perfeição a voz de Orlando Silva nos bailes locais e logo se mudara para Salvador, onde ficou por pouco tempo, pois ao dedicar sua vida à arte não imaginava que seria tão difícil sobreviver somente dela. Voltou a Juazeiro mas recebeu um convite para substituir Lúcio Alves em um conjunto vocal no Rio de Janeiro. Era a chance que estava esperando e, sem se lembrar das dificuldades que vivenciou em Salvador, parte para o Rio de Janeiro em 1950.

Dos grupos vocais surgiriam nomes como João Donato, Garoto e João Gilberto, reconhecidos como grandes músicos hoje, mas na época eram jovens com grande curiosidade musical. Junto com outros meninos da classe média carioca, se reuniam em fã-clubes para ouvir Frank Sinatra e o brasileiro Dick Farney (que estava fazendo um tremendo sucesso no exterior). Esses fã-clubes eram bem fechados em estilos concretos, havendo poucas aceitações daquilo que fosse diferente dos grandes ícones musicais dos anos 1950. Como Dick havia conseguido seu reconhecimento no exterior, o sonho americano dos jovens de classe média passou a ser mais constante.

A rivalidade dos fã-clubes e a influência do Jazz e da música branca norte-americana dominaram esse período no Brasil, mas após 1954 o samba volta a falar mais alto dentro da Bossa Nova de “Chega de Saudades”.

João Gilberto, agora cantando baixinho, conseguia obter do violão uma batida muito diferente do samba, do jazz ou do blues, mas ao mesmo tempo, com elementos de todos os ritmos ouvidos na época facilmente detectados.

No início da década de 1940, Walt Disney dá vida a Zé Carioca, personagem inspirado em um brasileiro que, durante uma visita aos Estados Unidos, chamava tudo o que fosse diferente, inovador de “bossa”. Após a gravação de “Chega de Saudades”, a gíria do malandro carioca passaria a denominar a nova batida de João Gilberto, que passou a ser copiada por outros: surgia assim a Bossa Nova.

Na parte pobre da cidade, pouco depois do surgimento oficial da bossa nova, nascia também no Rio a Jovem Guarda, que era mais simples e mais popular, sendo mais fácil de ouvir do que a Bossa Nova e por isso, cairia nas graças do povo mais rapidamente. Encabeçada por nomes como Roberto e Erasmo Carlos, Tim Maia e Jair Rodrigues, a Jovem Guarda consegue superar a popularidade da Bossa Nova, mas nem por isso ofuscar a beleza e genialidade dos bossa novistas, que iniciam o processo de reconhecimento da música brasileira em outros países, pois agora passaria de influenciada pelo Jazz a influenciadora do mesmo. A internacionalização com “Garota de Ipanema” e “Wave” foi selada com uma apresentação de diversos artistas da bossa nova na badalada casa de espetáculos nova-iorquina Carnegie Hall, em 1962. Já a Jovem Guarda conquistaria as donas de casa com suas letras românticas, beirando à brega, mas perpetuando-se até os dias atuais, diferente da Bossa Nova, que, alienada politicamente, não teria espaço no contexto ditatorial em que o Brasil se envolveria a partir de 1964.

A nova leva de baianos que chegou ao Rio de Janeiro e a São Paulo a partir dos anos 1960 trouxe consigo aquilo que seria a nova motivação dentro da música popular brasileira: o engajamento político.

A música de protesto passa a ser divulgada nos festivais de televisão, que haviam transferido os antigos programas de auditório das rádios para os estúdios da TV Record e da TV Tupi. Durante esses festivais, realizados em centros estudantis como o TUCA, da PUC de São Paulo, para um público preocupado com o caminho político adotado após o golpe de 1964.

Gilberto Gil, Caetano e Maria Bethânia e Tom Zé encabeçavam o movimento intitulado “Tropicália”, que evidenciava uma nova mistura de ritmos nordestinos como de Luiz Gonzaga, das músicas de escravos adotadas pelo samba e agora também da nova (velha) batida de João Gilberto, além da influência das músicas de negros de outras partes do mundo, aproveitando elementos do reggae da Jamaica, do blue norte americano e da música africana contemporânea, fazendo jus ao nome “geléia geral”, título de uma música de Gilberto Gil e Torquato Neto de 1963.

A tropicália mantém um ritmo frenético até o final da década de 1970, junto com os Mutantes de Rita Lee e outros grupos de São Paulo. Surge, também na década de 1970, um grupo chamado Os Novos Baianos. Com a genialidade poética de Moraes Moreira e Luis Galvão, a guitarra rock´n roll de Pepeu Gomes e a voz angelical de Baby Consuelo, os Novos Baianos logo passam a se apresentar nos programas de TV e despontam como a grande sensação de 1969.

Toda essa construção feita ao longo do século XX na cena musical brasileira, composta de genialidade e excentricidade dá todo o suporte necessário para o nascimento, já em fins dos anos 1970 e começo da próxima década, do rock brasileiro, com peculiaridades específicas do plano político brasileiro, bem diferente da pretensão de bandas de países mais estabilizados politicamente, como a Inglaterra e os Estados Unidos.

O rock nacional pregava a liberdade, evidenciada no movimento das “diretas já”, da busca pela liberdade de expressão e das organizações estudantis, sendo essenciais para a redemocratização política do cenário brasileiro e, consequentemente, o fim de penosos vinte e um anos de ditadura militar no Brasil.

A partir de então, a música brasileira tem se mostrado sempre aberta a novas influências, tornando cada vez mais difícil a definição de seus rumos e dos novos caminhos da indústria fonográfica no país, assim como no mundo globalizado. Cabe ao garimpeiro da música brasileira o trabalho de evidenciar essa dificuldade e cuidar para que a música popular brasileira continue contribuindo para a identidade pluricultural do país, perpetuando a importância da música nacional para o resto do mundo, vivenciada no passado e hoje mais do que nunca.